É tarde eu já vou indo...

A porta estará sempre aberta. Caberá a você ousar entrar, espiar, invadir e decidir descobrir o que tem do lado de dentro.
Não posso ser responsável pelas suas impressões, elas serão simplesmente suas.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O rapto do felino

Foto: alicepguimarães
Elementos da Foto: a gata Justine e sua dona, Verahoana - S. Paulo/2007

Não entendia muito bem porque havíamos mudado para àquela casa velha, sem charme algum. Coisas de artistas. Às vezes, são tão insatisfeitos e donos de uma lógica tão exótica, que se coubesse a nós, ditos irracionais, ainda seria pertinente.

Tinha o gosto pelas artes. O cheiro da tinta, para mim era um bálsamo. Não sei se porque sempre me vi naquele ambiente dos pincéis, telas e tintas, mas ficava fascinado a cada vez que elas produziam um novo quadro.

Rondava a peça como um crítico, quase que um degustador de arte, pois cheirava, e cheirava pelas bordas do quadro, tomando todo o cuidado para não danificá-lo. Às vezes me escapava a ponta da cauda peluda, que espatulava a tinta ainda fresca. Tinha aquilo como uma contribuição meiga de minha parte, um toque final, o qual me rendia alguns passa-foras com objetos arremessados em minha direção.

Acostumara-me àquela vida pitoresca. Nada me deliciava mais do que me deitar sobre algum móvel para observá-las pintando. Ia acompanhando tudo com muito interesse e assumia a obra como de minha criação. Por vezes, me sentia o elemento inspirador daquelas telas.

Quando não gostava do resultado, dava-lhes às costas e ia à procura de algo mais interessante, como um passeio pelo sótão entre revistas, artigos de arte ou pela oficina, onde se construíam as peças plásticas, a matar as horas entediantes.

Não gostava muito dessas incursões ao sótão, porque era obrigado a depara-me com os outros moradores do casarão que, diga-se de passagem, os considerava intrusos: Cinco felinos e um Canino. Sem estirpe, de aspecto descuidado e sem nenhum polimento, habitavam o lugar.

Apesar de viverem em ambiente tão fascinante, não possuíam o mínimo gosto pela arte. Passear entre as tintas, os pincéis e aqueles artigos históricos, não lhes fazia a mínima diferença. Eram realmente desinteressados pela riqueza cultural do lugar em que viviam.

Para mim, viver em tal companhia era penoso, pois, via-se pela minha própria aparência, que eu não era um felino qualquer. Tinha charme. Era esteticamente adequado ao contexto.

Quando mudamos, fiquei um tanto deprimido. Via naquela casa algo de sonho impossível. Diziam elas que ali era um promissor reduto de artistas e intelectuais. Não conseguia entender como aquele lugar, cheio de casarões velhos e acinzentados, com aquela praça sem flores, sem nenhum toque especial, poderia ter um futuro promissor, mas isso era na minha visão de felino.

Gostaria muito mais de estar a beira-mar, com aquela brisa vespertina a bailar as cortinas do antigo apartamento. Adorava aquele movimento dos ociosos ao final do dia. O sol se pondo por detrás do Cristo Redentor, dourando a água ao cair da tarde vadia. Ah, saudade da brisa marinha! Do vai-e-vem das belas moças passantes do calçadão. Fazer o quê? Não tinha outra opção mais digna. Ou o casarão ou a rua, o vagar na vida. Não era, um felino com esse estilo vadio. Conformei-me.

A freqüentar a casa, vinha sempre à mesma amiga. Passava horas desfiando em prosas sua vida, a quem elas ouviam enquanto pintavam. Gostava de suas visitas, pois me acarinhava o pêlo por toda à tarde. Em seu colo repousava por horas a fio no decorrer de suas longas conversas.

Foi tomando afeição por mim de tal maneira, que quando entrava primeiro procurava-me, antes de dizer qualquer palavra. Morava nos arredores do bairro. Bem casada, parecia. Pelo menos, assim se dizia. Sua afeição por mim foi tornando-se um vício, que me fazia feliz. Sentia falta daquelas tardes, quando não aparecia para a conversa tão cotidiana.

Após algum tempo, fomos ficando íntimos. Ao entrar, já ia eu aninhar-me em seu colo. Ali, começamos nossa convivência mais estreita. Foi então, que numa bela tarde de sol frio, demos nosso primeiro passeio. Ela ao sair, pediu permissão para levar-me a um passeio de carro. Não houve qualquer resistência diante de figura tão conhecida.

Assim, rumamos de volta à beira-mar. Radiante me sentia. Ah, quanto tempo eu não via tão belo lugar! As ondas batendo nas pedras. O chacoalhar das árvores, soprando suas folhas pelas ruas meio vazias -já começava o inverno- mas, mesmo assim, era bonito. A praia tem sempre sua beleza garantida em qualquer estação do ano.

Passamos de nossa rotina de colo e carícias a longos passeios pela orla, sempre acompanhados de doces lambidas em sorvetes e biscoitos de chocolate. O que antes era motivo de prosas, já não mais existia, ela apenas passava apressada a apanhar-me de companhia às suas fugas vespertinas. Tornou-se tão habitual que as pintoras já nem percebiam minhas longas saídas. Nem eu havia me dado conta de que algo diferente acontecia.

A cada semana, visitávamos o mesmo pequeno apartamento, onde minha amiga despejava caixas cheias de objetos pessoais. Assim, íamos e vínhamos sempre carregados de alguma bagagem. Enquanto ela as arrumava, eu passeava entre as peças, fazendo um reconhecimento e interferindo na sua arrumação, como se grande conhecedor de decoração fosse e pudesse impor-lhe um estilo.

Quando voltávamos ao casarão, estava tão exausto que nem percebia que as pintoras me inquiriam. Deitava-me sem sequer aceitar o jantar por elas oferecido.

Passaram-se muitas semanas até o último dia. Ela chegou cedo, apressada, com alguns cabides na mão e, como sempre, pediu-lhes a permissão para levar-me ao passeio diário. Tão comumente a cena se repetia que não perceberam seu movimento fortuito e assim o consentiram.

O carro percorria as ruas desertas. Era um domingo de pouco movimento. Algumas pessoas andavam a esmo, as esquinas estavam vazias. Dobramos então na rua da praia. Sentia imensa alegria. Ali estava o meu mar. Que prazer me trazia!

Ela parou defronte ao pequeno prédio. Com cuidado colocou-me em uma cesta de vime e levou-me pelo elevador cheio de espelhos, nos quais me via multiplicado por todos os ângulos. Fiquei vaidoso ao olhar-me. Achava-me lindo. Tinha o pelo tão branco que mais parecia com as espumas do mar.

Quando entramos, reparei que,o antes vazio apartamento, agora já tinha um jeito de lar. Um grande e redondo tapete adornava a sala. Grandes portas verdes abriam-se para uma varanda envidraçada. Para minha surpresa, havia ali uma mesa de ferro batida, pequena e bem posicionada. Encima uma estratégica almofada de xadrez. De um salto, alcancei-a num só pulo.

Para meu delírio, descortinava-se a minha frente a mais linda vista do meu mar. Deitei-me a admirar. Podia ver com exatidão a minha rua; a minha praia e o belo Cristo Redentor aonde o sol ia se pôr. Teria sido colocada para meu deleite, aquela mesa tão própria para um cochilo sonhador? Ela abriu a janela e a brisa fez voar os papéis ainda espalhados pela casa. Invadiu meus pêlos e lacrimejou meus olhos, mas eu nunca estivera tão feliz. A noite caiu.

Daquele dia em diante ela nunca mais retornou ao largo do casarão das pintoras. Aqui fico eu a pensar: quem jamais poderia imaginar que de prosas e carícias, viesse eu a morar perto do meu mar. Ela nunca saberia que ao me raptar, pensando em preencher sua vida vazia, na verdade, ela apenas devolveria minha alma poeta ao seu verdadeiro habitat.

Niterói-2002 - Sem revisão Gramatical

Nenhum comentário: