É tarde eu já vou indo...

A porta estará sempre aberta. Caberá a você ousar entrar, espiar, invadir e decidir descobrir o que tem do lado de dentro.
Não posso ser responsável pelas suas impressões, elas serão simplesmente suas.

domingo, 11 de abril de 2010

O mar de outono




E o outono chegou novamente, sem chuva e sem dias muito frios. O céu está de um azul esplêndido.

O mar, um complemento da beleza azul, de poucas ondas, às vezes manso e imenso; às vezes rebelde e tão próximo. A praia vazia cabe inteira no meu olhar. Alguns poucos a brincar com as ondas, sorvendo a sua grandeza.

Sento-me à sua frente sem desviar os olhos e consigo enxergar na sua infinitude os sonhos, os desejos escondidos, a fúria da passagem dos anos que leva de mim a vida e me deixa para trás no mais íntimo dos planos.

O mar de outono é um convite ao reencontro comigo mesma. É nele que deposito as aspirações mais profundas e vislumbro os meus caminhos. Encurto as minhas distâncias, viajo nas minhas alucinações, redescubro o tempo de recontar, refazer, recriar, recompor e voltar a sonhar na próxima primavera.

Por: Alice P. Guimarães
Floripa, 24/05/2009

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Quanto vale amar?


Desenho: Autor Desconhecido

Quanto vale amar?
Um conto?
Um vintém?
Lágrimas que jorram como rios corrediços que ninguém detém?

Quanto vale amar?
Planos insatisfeitos?
Carinhos requeridos, nunca recebidos?

Quanto vale amar? Doar, doar? Não sei.
Saber-se-ei?

Como no vácuo do vento, sinto um vazio imenso,
apartada da vida por alguém.

Procuro na minha loucura, o mundo. Não há mais ninguém.
Espero todos os dias por aquele dia de agosto que acreditei amar também..

Chuva de pedra.
Cai à noite.
Sábado, transborda a solidão. Soterra minha alma pelo desamor de alguém.

Porto Velho - 2000

Onde eu coloco o lixo?


Foto: A própria

Não se esqueça nem por um dia:
quando o seu carro ao cruzar o farol da esquina vazia e - como numa aparição - aquele moleque gritar:
- Passa a bolsa tia!
Não se esqueça nem por um dia.

Não se esqueça nem por um dia:
de sua carteira abatida e você jaz ali, riscada da lista da vida. Pode crer, por detrás da alça de mira daquela arma vadia, estarão os filhos do Brasil dois mil, que o nosso dinheiro financia.
Não se esqueça nem por um dia.

Não se esqueça nem por um dia:
da geração das palavras de Ordem, “da Liberdade antes que tardia”.
Não se esqueça nem por um dia.

É isso: dos anos setenta a dois mil, ficaram pelo meio, os anos oitenta que esta geração produziu.

Pasmo em constatar que não temos mais pelo que lutar.
Caíram todas as Bandeiras.
Fecharam nossas trincheiras.
Derrubaram todos os mitos.
Transformaram a história num rito de almas abandonadas a vagar.

Cabeças desabitadas.
Mentes vazias.
Não sabem nem o nome da Tia, que dirá o significado da palavra “anarquia.”

Varreram de suas vidas a ideologia.
Enfiaram-lhes goela abaixo as marcas e patentes da massificação dormente que, pensam eles, ser a nova rebeldia.
Não se esqueça nem por um dia.

Não se esqueça nem por um dia:
que fizemos nós, produzindo nos anos setenta, os alicates de corte das correntes que hoje predem os corpos adolescentes a mentes tão dementes!

Cheiram a vida no pó reluzente e seus discursos eloqüentes, não passam de monossílabos babados, saindo por todos os lados a toque de um baseado.
Não se esqueça nem por um dia.

Que língua é esta desta gente? Sânscrito ou qualquer dialeto indecente?
Da materna nada se sabe.
Sinto-me só neste Continente de robóticas turbinadas e neurônios aniquilados.

Caíram todas as Bandeiras.
Fecharam nossas trincheiras.
Não há pelo que lutar.

E que saudade de Chico em sua doce melodia! “Estava à-toa na vida pra’ ver a banda passar...”

Que me perdoem Vandré, Chico e Luiz Melodia, mas nem o Estácio alivia os sentidos dos erros cometidos, pois esta não era a liberdade que eu queria.

Niterói-RJ/2003

Cataclismo


Foto: Marcelo
Lapa- PR/ 2007

De repente, se fez entre a gente a distância do oceano.
De repente, se fez entre a gente a linha imaginária que corta a terra.
De repente, se fez entre a gente a muralha da China, repartindo nossas vidas.

De repente, se fez entre a gente os duzentos anos do sono de Herculano.
Instalou-se o silêncio, soterando nossos planos.
De repente, se fez entre a gente dois continentes.
Nada mais se distinguia.

De repente, se fez entre a gente dois rumos tão diferentes.
Vias paralelas, que transversal alguma jamais cruzaria.
De repente, nada mais se fez entre a gente.

Porto Velho/RO - 2000

Desancorado



Búzios/RJ - 2003

Nada mais ficou dos traços e dos planos, apenas enganos.
Abafa o gemido que insiste no peito.
Traz consigo o medo como segredo.
Enche o destino obscuro. Tateia como um cego, que na bengala traça o caminho.

Cada um ao seu lado, rumos desencontrados.
Desejo de ser o outro lado do dia que não termina.
Vai longe à história construída.
Alma agora dividida, antes gêmea , hoje abortada.

Falta o seu cheiro.
No desespero, afunda a dor no travesseiro.

Pernas entrelaçadas, âncoras da madrugada.
Resta o gelo da cama de solteiro que abriga o seu corpo inteiro.
Intimida o medo do vazio,
Bate a porta e sai escondido.

Porto Velho/RO - 2000

Retrato da Alma

Foto: Paula de Carvalho
Lapa-PR - 2007

Andando ia sozinha.
Alma inquieta, dispersa, desvairada.
Solidão que se avizinha,
ia comigo como companhia.

Solidão da alma que não se acalma,
alarga o peito de coração estreito.
confunde a mente já demente,
invade o resto que ficou desfeito.

Barulho urbano, intocável eco distorcido.
Som conhecido do coração partido,
da alma calada que aos poucos se apaga,
deixando o nada sem sentimento, sem choro, sem lamento.

Feliz, palavra apenas de dicionário e de poema,
mas nunca habitada pela alma pequena.
Que sente pena do corpo lento,
que o movimento se faz pelo vento.

Vagueia ventania.
Repisa o sopro da vida.
Chuta o tempo e aos pontapés quebra o silêncio.
Assim termina mais um dia.

Niterói/2003 - Sem revisão

Ponto Final


Foto: Guilherme Castoldi - 2006
Ribeirão da Ilha/Floripa/SC

Dei a você o melhor de mim: meu amor, amizade e lealdade.
Com você reparti os melhores anos, o carinho e o sonho.
Fiz de você meu companheiro certo, amigo predileto; meu parceiro, meu herói, meu doce guerreiro.
Você foi embora assim: sem amizade, sem lealdade, sem amor por mim. Apenas me legou um robe e um pulôver de tricô; minha vida você levou.
Parti sem palavras, sem um abraço, sem um muito obrigado.
Sem ouvir um nada, voltei pela mesma estrada que juntou você a mim.

Petrópolis/RJ - 2000 -Texto sem revisão

Éramos tão jovens...


Foto: Paula de Carvalho
Eu no Cone do tempo - Curitiba/PR 2007

Éramos tão jovens! Tudo era possível, a vida estava só começando. Tantas descobertas, tanto ainda por se revelar: a festa, os amigos, as viagens, os pequenos delitos. Éramos inocentemente jovens.

Acreditávamos no amor eterno, no amigo pra sempre, na vida infinita, na juventude atemporal. Ouviamos Vandré enchendo o peito de ar e seguíamos enfrente sem contabilizar os anos. O minuto era eterno. O tempo parava para ver passar nossa juventude com fúria, beleza e ingenuidade.

A trilha sonora do momento era o nosso combustível. Embalados pela melodia éramos atores do nosso próprio roteiro imaginário.

Haviam os planos, os sonhos, as conquistas sem metas estabelecidas, o que, aliás, não contabilizávamos era o tempo. Corríamos pela vida como no jardim de nossa casa, tão conhecido era o terreno.

Éramos tão jovens e o beijo era o mensageiro da paixão que vinha embrulhado em abraços, amassos no muro da esquina. Tudo resplandecia. A felicidade era nossa droga predileta, o nosso vício inconfessável.

Sempre um novo motivo para comemorar. Um sentimento novo para desvendar. Um novo amigo, um novo lugar, um outro pôr do sol para apreciar. Éramos tão jovens que a juventude se perpetuava a cada nascer do sol.

Éramos os donos do melhor amigo, da melhor festa, da melhor história, da maior paixão. A intensidade do nosso viver era tanta e tão pouca que nem me lembro mais o tempo que percorri.

Ao acordar hoje, não precisei me olhar no espelho para me sentir, aos cinquenta e dois anos, ouvindo a mesma trilha sonora sem me dar conta se estava no presente, no futuro, ou ainda adormecida no passado. Apenas percebi que éramos tão jovens!

São Paulo - Ago/2007 Sem revisão

A Busca


Foto: alicepguimarães
Ribeirão da Ilha/Florianópolis - 2007

Hoje sai por aí como se fosse mais um dia como outro qualquer. Sai meio que me procurando. Fui até a esquina e não estava lá. Resolvi então ir mais além. Dei uma volta no quarteirão, mas também não estava lá.

Então pensei: e se eu for mais longe? Pegar um ônibus, quem sabe? Andei até o ponto mais próximo e quando entrei resolvi sentar-me à janela para ir me procurando. Avenidas, praças, esquinas, a ponte por sobre o livre mar que se espraia por todos os lados da Ilha. Reparei, não estava lá!

Parei no centro velho. Fitei o casario, o vai e vem das pessoas com pressa, sempre a pressa! Vento sul balançava as saias, carregava os cabelos, encharcava os corpos frenéticos. Esperei em vão, também não estava lá.

Perguntei-me: será que me espero? Mas e se me demorar muito? Talvez não dê tempo de me encontrar. Quem sabe devesse voltar?

Caminhei, fucei todos os cantos. Espiei por trás das árvores e nada. Muito tempo depois, já em casa, lá estava, que surpresa!

Ao toque de cada letra me senti. Pude ver a minha fisionomia, como se num espelho estivesse. O branco do papel virtual me refletia. Aqui estou em cada entrelinha.

Floripa/2007 - Sem revisão

Carta para Stella


Bar do Arante - Floripa/SC

Sinto saudade amiga minha, a mais cara de todas. O abraço mais íntimo e generoso que conheci.
Sinto saudade amiga minha, das conversas longas, sem tempo e sem hora, sem ponto final.

Sinto saudade amiga minha, dos afagos nos pés, das massagens nas têmporas, quando das dores de cabeça lancinantes.

Sinto saudade amiga minha, dos papos intermináveis nas noites de dor, das chegadas repentinas ao menor sinal de sofrimento.

Sinto saudade amiga minha, dos carinhos transformados em lanches preciosamente preparados; em remédios ministrados madrugada afora; das mãos passadas nos cabelos, sussurrando estar chegada à hora da próxima dose.

Sinto saudade amiga minha, da cama cedida a minha angústia. Dos nossos risos meros, dos momentos belos de nossa convivência.

Sinto saudade amiga minha, de sua mão única a acenar o adeus na dolorosa partida.

Para você amiga minha, escrevo e pronto. Não preciso de ponto para dizer que sei, que foi de você que levei o melhor que eu ainda tinha.

Mas mesmo assim, sinto tanta, tanta saudade, amiga minha.

Niterói - 2000 Sem revisão

Adoro andar de ônibus

Foto: Autor desconhecido
Blumenau/SC

Adoro andar de ônibus. Nada se compara a liberdade de estar em vários lugares, ter várias óticas da cidade. São momentos especiais. Flashes do cotidiano fotografados por meus olhos, tal e qual uma história em quadrinhos, onde um único movimento necessita de vários riscos.

A vida se renova sempre que entro no ônibus, ainda que no mesmo trajeto. A mulher da blusa azul não estará mais naquela esquina. O homem que carregava a pasta preta também não. Mas pelo menos eu sei que eles existem. Que suas histórias se cruzam a minha, mesmo que em outros trajetos ou talvez no mesmo, ainda que a blusa seja branca.

Adoro andar de ônibus. Sempre descubro coisas novas no caminho. O mundo e o movimento da vida são tão cheio de possibilidades.

Da janela do ônibus faço o enquadramento da minha câmera especial, os meus olhos. Fotografo várias cenas, dirijo vários roteiros, escrevo muitos livros. Vivo intensamente da janela do ônibus. Participo da vida alheia sem consentimento. Viajo a lugares além da dimensão real. Coloco a ordem ao caos da cidade.

Faço amigos íntimos no enquadramento das janelas dos edifícios. Vou indo perto e longe da vida e consigo tocar as vidas que trafegam sem ter que pedir permissão.

Adoro andar de ônibus...

Florianópolis/2007 - Sem revisão

A casa da mãe

Foto: alicepguimarães
Bosque do Papa - Curitiba-PR

Tem coisas na vida que por mais simples que sejam, nem de longe se comparam à outras conhecidas. São assim como nossas digitais, são únicas.

A casa da mãe é assim. O lugar certo para você voltar quando sua saída para o mundo não der em nada. Uns dizem que depois que se sai de lá não dá mais para voltar. Pura mentira!

A casa da mãe é o único lugar onde tudo é de todo mundo, menos dela. Você vai embora levando suas roupas e objetos pessoais, mas deixa sempre um chinelo velho de borracha, uma escova de dente usada, o ursinho de quando era criança; alguns discos que não lhe interessam, mas ainda são seus, e um monte de tranqueiras. É meio que um depósito onde suas coisas ficam guardadas para alguma precisão.

Lá, a mãe não é dona de nada. Quando o filho mais velho chega com a família para o almoço de domingo e resolve escutar aquele Ray Charles, a mãe logo diz:

- é melhor não mexer, você sabe que seu irmão não gosta.

E se o neto descobre aquele jogo de panelinhas no fundo do armário, ela replica:

- larga isso menino! São coisas da sua tia que ela guardou para dar de presente quando nascer a primeira filha.

Na casa da mãe, você usa a toalha de banho dela e volta com a sua seca dentro da mala. Você chega na hora do almoço, sem avisar, e sempre tem uma sobrinha pra você. Você leva pra casa o resto do bolo que ela reservou para o café da tarde, com a desculpa de que já está rolando há muito tempo na geladeira.

Quando sua irmã briga com o marido, ela diz:

- eu avisei que isso não ia dar certo...e arremata:
- não sei o que você está fazendo lá que ainda que não veio embora!

Na casa da mãe tem sempre um potinho com uns trocadinhos que ela guarda para comprar o pão, e você os pega para facilitar o troco de sua passagem de ônibus.

O Natal, e também a Páscoa, são sempre obrigatórios passar na casa da mãe. Não que seja só por ela, mas porque na casa da mãe você encontra a ceia pronta e ainda tem a cara de pau de sair sem arrumar a bagunça.

Você também manda na casa da mãe. Escolhe a cor do sofá que ela quer reformar, dá esporro na empregada, determina o que fazer pro almoço, implica com o vizinho dela e sempre carrega alguma coisa que está sobrando por lá, que você diz estar precisando muito.

Na casa da mãe, você lê o jornal e deixa espalhado pelo chão. Não precisa apagar a luz do banheiro; troca o canal da TV assim que chega, fala interurbano e não paga a conta e, ainda por cima, quando vai embora, sempre pede um dinheiro emprestado que nunca devolve. Afinal, dinheiro de mãe não se paga, é de coração.

Depois, na verdade, você nunca quis mudar da casa da mãe e ela, maliciosamente, também nunca quis que você fosse embora.

Mãe sempre tem suas predileções por algum filho, apesar de dizer que amor de mãe é igual pra todos. A verdade, que pra ela, você pode ser ex-tudo: ex-genro, ex-marido, ex-namorado, mas nunca vai ser ex-filho.

A Casa da mãe é uma coisa assim: patrimônio coletivo. Tanto que quando você se refere a ela, sempre diz: lá em casa...

Verdadeiramente, a mãe é a única mulher que você consegue conviver até que a morte os separe. E quando isso acontece, mesmo assim, você briga para ficar com a casa da mãe.

Niterói/RJ, 30/11/2003 Texto sem revisão gramatical

Malavida

Foto: alicepguimarães
Museu Oscar Niemeyer "Olho" - Curitiba - PR

Quando tudo terminou, olhei a minha volta e vi apenas caixas. Caixas pequenas, caixas grandes, enormes; pobres embalagens de papelão empoeirado, conseguido nas esquinas; sem serventia, sem brilho e sem destino. Sim, era isso que acontecia. Ali havia um amontoado de caixas sem destino algum, já que acabara. Não sei bem porque as pessoas levam tantas coisas...talvez pensem estar guardando a sua vida. Ilusão!
Rapidamente, numa grande mala, coloquei aquilo que era meu, ou seja, aquilo que pensava, verdadeiramente, me pertencia. Sem jeito algum, sem capricho, com cabide e tudo foram jogadas às pilhas; amassadas, tudo que restava de mim. Você olhava calado, quieto, inanimado. Procurava em seus olhos qualquer brilho que trouxesse de volta o verdadeiro amigo, mas fechei o zíper com esforço e você, inexpressivo, ficou impassível diante de mim.
Quando parti, levei tudo que tinha na mala de couro, enorme e suja, coloquei o que pensava realmente ser parte da minha vida. Parti sozinha, sem alegria, sem uma estrela guia. Apesar do peso da enorme mala, ela me parecia vazia.
Ao descer do avião, surpreendeu-me o moço, que da fiscalização me viu. Fez um sinal para que eu a abrisse e mostrasse o que ali tinha. Deixei-o à vontade para expor minha vida. Abriu a grande mala sem dizer uma palavra e, parece, com dó de mim, revirou com cuidado cada pedaço daquele emaranhado. Enquanto isso acontecia, ia revivendo um pouco o meu passado. Calças velhas, blusas surradas. Lá no canto esquerdo, sob a bolsa colorida, havia uma caixa bem cuidada, coitada! Trazia o único sapato de festa; mal sabia ele - que tão pouco fora usado - agora estaria precocemente aposentado.
O homem levantou o vestido preto e admirou-se...era bonito! Era o único fiel. Estava sempre comigo nas raras oportunidades de dançar na vida. Revirando o fundo encontrou a pequena caixa marrom. Soltou um cínico sorriso como se tivesse achado algo precioso que pensava estar escondido em meio aquela barafunda. Sua face endureceu e ele apenas percebeu: ali ia todo o meu legado. As coisas que realmente gostei e levei por amor: meus brincos e colares, brilhos da minha vida opaca dos últimos vinte anos. Não abria mão deles em momento algum, mesmo que não os usasse. Gostava de remexê-los e verificar se nada havia se perdido.
Surpreso ele ficava a cada peça inusitada que encontrava: meias finas, nunca usadas; papéis escritos pelo amor infantil, com rabiscos e desenhos; chinelos de borracha; peças incomuns se misturavam e não traziam ao meu inquisidor nenhum sinal de quem eu era, ou do que ele julgava de mim. Já meio desanimado, tomou-se pelo cansaço e fechou a grande mala, resmungando o nada encontrado.
Tomei-a de volta nas mãos e enfim, me veio o único sorriso. O que aquele moço não sabia, é que ali, naquelas coisas empilhadas, sob tudo, num falso fundo, ia o grande tesouro da minha vida, sem o brilho que o ouro tem: a grande desilusão da partida. Sem abraços, sem sequer uma despedida.

Niterói - Dez/2000 - Texto sem revisão gramatical

Retalhos de Vidro

Foto: Marcelo
Lapa/PR

Cai à noite. Já passa das seis e meia. Os retalhos de vidro, antes foscos, começam a se colorir um a um como tintas misturadas pelas mãos experientes do mais famoso dos pintores, jogadas em sua paleta para dali retratar sua visão mais íntima da natureza humana.

As luzes se ascendem e deixam mostrar o interior por detrás dos retalhos de vidro. Aos poucos, a grande parede ganha a vida de um mosaico bem definido. Por entre cortinas entreabertas, vidas vividas, tão comuns como a minha.

Do décimo segundo andar vejo a todos em suas doces rotinas. Noites a fio fico a observar cada morador da parede vizinha. Vejo salas decoradas com esmero. Quartos bem cuidados. Em outros, apenas roupas jogadas.

As cortinas se abrem pausadamente, deixando escapar o ar concentrado dos apartamentos fechados.

No décimo segundo andar, bem de frente, duas poltronas de bolas coloridas chamam minha atenção. Altas horas e seu habitante permanece ali sentado; estirado, parece cansado. Assiste a TV como que por hábito, sem a mínima intenção. Mais abaixo, a cozinha se ilumina ocupada pela família do nono andar; reunidos, saciam sua fome voraz do dia.

Em volta da grande mesa antiga, lá pelo sétimo andar, o senhor e a senhora, solitários, degustam em silêncio o grandioso jantar que ela prepara todos os dias, como que para manter viva a família. Nunca saem, mas seu retalho de vidro se ilumina quando, ao cair da tarde, o prédio enfrente inicia a sua rotina.

E assim, cumprem o mesmo ritual acompanhando o tom da vida alheia, tão repleta e tão vazia.

Niterói/2001 - Texto sem revisão gramatical

Madrigal

Desenho: Autor desconhecido

Quando me atirei ao mundo em busca da modernidade pensava não seres lugar para mim. Parti.
Eras ainda menina, curiosa, altiva, já mostravas a tua fidalguia. De tudo querias saber e trazer para si. O novo era o teu fascínio. Dizias - um dia serei vista pelo mundo inteiro - e não é que o mundo veio vê-la!
Passado muitos anos, as lembranças me viam. Lembranças de prosas em praças; dos passeios no Parque Trianon, das tardes de confeitaria e cumprimentos cerimoniosos.
Notícias chegavam de ti. Tu te tornaste tão alta que foras avistada além dos Oceanos. Correu tua fama no estrangeiro. Não mais resisti. Vim ver-te de perto.
Agora és ligeira. Teus braços longos conduzem a pressa que atravessa, sem medo, as tuas entranhas. Teus membros se expandiram. Fez de teus seios ama-de-leite de todos os homens, filhos de muitos pais.
Encontrei-a na plenitude de tua madureza e vi que, com sabedoria, aninha, em teu colo, muitos Pedros, Marinalvas e tantos outros forasteiros Acalenta-lhes os sonhos, doa-lhes o alimento farto. Abrigas a todos em teus muitos labirintos.
Soberba ainda, senhora de muitas histórias. Imponente, misteriosa, eleva-te ao cume, grandes construções. Derrama o progresso. Mete medo, tão complexa urbanidade. Instiga-me a uma aventura.
Percorro tuas avenidas, outrora quintais de jogos de menino. Já nem sei mais de teus caminhos.
Subo e desço elevados. Sequer sei o roteiro que dantes tinha como mapa de meu tesouro. Perco-me nos teus esconderijos. Confunde-me tanto letreiro. Não acho o vizinho da casa ao lado. Pareces-me tão estranha. Ainda assim, reconheço-te em mim.
E quando do alto do Chá me acho, sob a garoa da noite de julho, limpo os olhos do cansaço. Dou um chute no tempo. Quebro o meu silêncio. Abro o peito e rasgo o grito: que me importa se já não cheiras a Jasmim! Que me importa o teu mar de concreto! Abriga-me, São Paulo, em ti. Eis de volta o teu Curumim!

São Paulo - 2005 texto sem revisão gramatical

O rapto do felino

Foto: alicepguimarães
Elementos da Foto: a gata Justine e sua dona, Verahoana - S. Paulo/2007

Não entendia muito bem porque havíamos mudado para àquela casa velha, sem charme algum. Coisas de artistas. Às vezes, são tão insatisfeitos e donos de uma lógica tão exótica, que se coubesse a nós, ditos irracionais, ainda seria pertinente.

Tinha o gosto pelas artes. O cheiro da tinta, para mim era um bálsamo. Não sei se porque sempre me vi naquele ambiente dos pincéis, telas e tintas, mas ficava fascinado a cada vez que elas produziam um novo quadro.

Rondava a peça como um crítico, quase que um degustador de arte, pois cheirava, e cheirava pelas bordas do quadro, tomando todo o cuidado para não danificá-lo. Às vezes me escapava a ponta da cauda peluda, que espatulava a tinta ainda fresca. Tinha aquilo como uma contribuição meiga de minha parte, um toque final, o qual me rendia alguns passa-foras com objetos arremessados em minha direção.

Acostumara-me àquela vida pitoresca. Nada me deliciava mais do que me deitar sobre algum móvel para observá-las pintando. Ia acompanhando tudo com muito interesse e assumia a obra como de minha criação. Por vezes, me sentia o elemento inspirador daquelas telas.

Quando não gostava do resultado, dava-lhes às costas e ia à procura de algo mais interessante, como um passeio pelo sótão entre revistas, artigos de arte ou pela oficina, onde se construíam as peças plásticas, a matar as horas entediantes.

Não gostava muito dessas incursões ao sótão, porque era obrigado a depara-me com os outros moradores do casarão que, diga-se de passagem, os considerava intrusos: Cinco felinos e um Canino. Sem estirpe, de aspecto descuidado e sem nenhum polimento, habitavam o lugar.

Apesar de viverem em ambiente tão fascinante, não possuíam o mínimo gosto pela arte. Passear entre as tintas, os pincéis e aqueles artigos históricos, não lhes fazia a mínima diferença. Eram realmente desinteressados pela riqueza cultural do lugar em que viviam.

Para mim, viver em tal companhia era penoso, pois, via-se pela minha própria aparência, que eu não era um felino qualquer. Tinha charme. Era esteticamente adequado ao contexto.

Quando mudamos, fiquei um tanto deprimido. Via naquela casa algo de sonho impossível. Diziam elas que ali era um promissor reduto de artistas e intelectuais. Não conseguia entender como aquele lugar, cheio de casarões velhos e acinzentados, com aquela praça sem flores, sem nenhum toque especial, poderia ter um futuro promissor, mas isso era na minha visão de felino.

Gostaria muito mais de estar a beira-mar, com aquela brisa vespertina a bailar as cortinas do antigo apartamento. Adorava aquele movimento dos ociosos ao final do dia. O sol se pondo por detrás do Cristo Redentor, dourando a água ao cair da tarde vadia. Ah, saudade da brisa marinha! Do vai-e-vem das belas moças passantes do calçadão. Fazer o quê? Não tinha outra opção mais digna. Ou o casarão ou a rua, o vagar na vida. Não era, um felino com esse estilo vadio. Conformei-me.

A freqüentar a casa, vinha sempre à mesma amiga. Passava horas desfiando em prosas sua vida, a quem elas ouviam enquanto pintavam. Gostava de suas visitas, pois me acarinhava o pêlo por toda à tarde. Em seu colo repousava por horas a fio no decorrer de suas longas conversas.

Foi tomando afeição por mim de tal maneira, que quando entrava primeiro procurava-me, antes de dizer qualquer palavra. Morava nos arredores do bairro. Bem casada, parecia. Pelo menos, assim se dizia. Sua afeição por mim foi tornando-se um vício, que me fazia feliz. Sentia falta daquelas tardes, quando não aparecia para a conversa tão cotidiana.

Após algum tempo, fomos ficando íntimos. Ao entrar, já ia eu aninhar-me em seu colo. Ali, começamos nossa convivência mais estreita. Foi então, que numa bela tarde de sol frio, demos nosso primeiro passeio. Ela ao sair, pediu permissão para levar-me a um passeio de carro. Não houve qualquer resistência diante de figura tão conhecida.

Assim, rumamos de volta à beira-mar. Radiante me sentia. Ah, quanto tempo eu não via tão belo lugar! As ondas batendo nas pedras. O chacoalhar das árvores, soprando suas folhas pelas ruas meio vazias -já começava o inverno- mas, mesmo assim, era bonito. A praia tem sempre sua beleza garantida em qualquer estação do ano.

Passamos de nossa rotina de colo e carícias a longos passeios pela orla, sempre acompanhados de doces lambidas em sorvetes e biscoitos de chocolate. O que antes era motivo de prosas, já não mais existia, ela apenas passava apressada a apanhar-me de companhia às suas fugas vespertinas. Tornou-se tão habitual que as pintoras já nem percebiam minhas longas saídas. Nem eu havia me dado conta de que algo diferente acontecia.

A cada semana, visitávamos o mesmo pequeno apartamento, onde minha amiga despejava caixas cheias de objetos pessoais. Assim, íamos e vínhamos sempre carregados de alguma bagagem. Enquanto ela as arrumava, eu passeava entre as peças, fazendo um reconhecimento e interferindo na sua arrumação, como se grande conhecedor de decoração fosse e pudesse impor-lhe um estilo.

Quando voltávamos ao casarão, estava tão exausto que nem percebia que as pintoras me inquiriam. Deitava-me sem sequer aceitar o jantar por elas oferecido.

Passaram-se muitas semanas até o último dia. Ela chegou cedo, apressada, com alguns cabides na mão e, como sempre, pediu-lhes a permissão para levar-me ao passeio diário. Tão comumente a cena se repetia que não perceberam seu movimento fortuito e assim o consentiram.

O carro percorria as ruas desertas. Era um domingo de pouco movimento. Algumas pessoas andavam a esmo, as esquinas estavam vazias. Dobramos então na rua da praia. Sentia imensa alegria. Ali estava o meu mar. Que prazer me trazia!

Ela parou defronte ao pequeno prédio. Com cuidado colocou-me em uma cesta de vime e levou-me pelo elevador cheio de espelhos, nos quais me via multiplicado por todos os ângulos. Fiquei vaidoso ao olhar-me. Achava-me lindo. Tinha o pelo tão branco que mais parecia com as espumas do mar.

Quando entramos, reparei que,o antes vazio apartamento, agora já tinha um jeito de lar. Um grande e redondo tapete adornava a sala. Grandes portas verdes abriam-se para uma varanda envidraçada. Para minha surpresa, havia ali uma mesa de ferro batida, pequena e bem posicionada. Encima uma estratégica almofada de xadrez. De um salto, alcancei-a num só pulo.

Para meu delírio, descortinava-se a minha frente a mais linda vista do meu mar. Deitei-me a admirar. Podia ver com exatidão a minha rua; a minha praia e o belo Cristo Redentor aonde o sol ia se pôr. Teria sido colocada para meu deleite, aquela mesa tão própria para um cochilo sonhador? Ela abriu a janela e a brisa fez voar os papéis ainda espalhados pela casa. Invadiu meus pêlos e lacrimejou meus olhos, mas eu nunca estivera tão feliz. A noite caiu.

Daquele dia em diante ela nunca mais retornou ao largo do casarão das pintoras. Aqui fico eu a pensar: quem jamais poderia imaginar que de prosas e carícias, viesse eu a morar perto do meu mar. Ela nunca saberia que ao me raptar, pensando em preencher sua vida vazia, na verdade, ela apenas devolveria minha alma poeta ao seu verdadeiro habitat.

Niterói-2002 - Sem revisão Gramatical

Ócio Urbano

Boneco de Pet - Técnica: Papietagem (Feito por mim)

A natureza grita.
A natureza se desespera.
E você urbano que não é humano, apenas espera.
Espera pelo mar de detritos.
Espera pelo ar poluído.
Espera pela terra agredida.
A natureza grita.
A natureza se desespera.
E você urbano que não é humano, apenas espera.
Espera pela desintegração.
Espera pela regeneração.
Esparrama o seu vício de espalhar seu lixo.
E eu, no vácuo desse ócio urbano, vou juntando seus detritos. Do seu lixo faço forma, gero a alma e não desisto.


São Paulo/2005 Sem revisão

Giramundo



Roda gira, gira a vida, gira mundo, giro eu. Do giro da vida nada é meu.
Não é meu o meu destino, minha vida, meu caminho. Minha vida é um cassino.
Jogo da roda, que rouba a fé. Deixa-me a pé no caminho da vida.
Jogo sem parceiro, nada certeiro, aprisiona-me em cativeiro.
Faço a volta, faço aposta.
Giro a roda da vida e vai e volta.
Roda cigana, roda mundana.
Viagem eterna, sem parada, sem hora certa.

São Paulo/2005 Sem revisão

Feitiço do Vento

Foto: Guilherme Castoldi
Lagoa da Conceição - Floripa/SC - 2007

Pedi pra morar bem alí pertinho.
Pedi para manter minhas raízes ao chão.
Pedi para ter flores na Janela, ter cão latindo, cheirinho de café fresco.
Pedi para ter bolo assando no domingo.
Pedi para ter vizinhos, carteiro batendo à porta.
Pedi para acordar na mesma cama, na mesma casa, na mesma rua, na mesma cidade.
Mas como o vento, vendaval, ventania, meu espírito se nega à constância.
Se entrega a passos largos. Se volta contra meus pedidos.
Me atira na vida. Me liberta do tempo e do cotidiano.
Me leva para outras ruas, outras casas, outras cidades.
Me força a experimentar novos aromas, novos sabores.
Espelha em meus olhos novos reflexos.
Canta aos meus ouvidos que é hora de partir, de girar a roda da vida.

São Paulo - Dez/2005

Confusão Literária



Foto: Autor Desconhecido

Não sei se o que escrevo é verso ou se é conto.
Não sei onde coloco o ponto e se rima com a vírgula.
Só sei que escrevo aquilo que vem de dentro, de um mundo atento à contemplação da vida.
Sinto em mim um movimento que impulsiona palavras, junta letras ao vento que no papel desabam.
Pra falar do sentimento que vai aqui dentro não tenho regra.
Não existe gramática e nem temática que impeça o papel de fazer esse acordo comigo pra dizer do que sinto.

Niterói - 2004

Desordem Gramatical



Foto: Autor Desconhecido

Aprendi na escola a regra da escrita.
Aprendi na vida que o sentimento é exceção à regra dita.
É dele que falo.
Por ele não calo.
Atropelo as letras, ponho os verbos na gaveta.
Abandono os pontos pra falar como eu conto o amor pela vida.
Não tem concordância que diga que o verbo é o amigo mais certo do meu substantivo.
Sou sujeito da vida, predicado de mim mesmo.
O objeto, que seja ele direto, pois é o meu sentimento que é tão intenso que não permite consenso com a regra da escrita.


Niterói/RJ - 2003 - Sem revisão

Espelhos



Foto: Paula de Carvalho
"Olho" - Curitiba-PR/2007

Três espelhos existiam na casa vazia: um no hall, um no lavabo, outro no quarto abafado.
Neles me refletia, me fazia companhia quando de solidão enlouquecia.
Neles, se fazia presente meu corpo demente de alma vadia.
Foram sempre companheiros, amigos verdadeiros, pois de mim não se esqueciam nem por um só dia.
Quando a noite vagava do quarto pra sala, da sala pro nada, ali estavam, com olhar parado, o ar abandonado do reflexo apagado.
Foram eles que testemunharam impassíveis, o passar dos meus dias, na casa vazia.
De quando as lágrimas marcaram o meu rosto nem riram do meu desgosto, só eles sabiam que o reflexo que viam nada mais dizia que não fosse a minha agonia.

Niterói/RJ - 2001

Miragem


Foto: alicepguimaraes
Lagoa da Conceição - Florianópolis/SC/2007


Espelho d’água, com suas garças mecânicas, postadas, rijas, pescoços eretos, postas uma após outra, em risca de partida. Aprumam seus mastros na espera da hora de entalhar teu aço.
Horizonte norteado por montes, aqui, acolá. Recobertos do tão etéreo verde meio ao urbano.
Não fossem os gigantes blocos acinzentados que mareiam a leste, serias tu, espelho d’água, a mais perfeita miragem meio a essa imensidão.
Espelho d’água trincado pelo ronco que interrompe o silêncio, filetando tuas águas em busca do mar mais profundo, que se estende de ti mundo afora.
Ao oeste invade-te o pequeno píer, encontro dos pássaros, onde solidário me curvo a tua grandeza.
Deixo-me ouvir nos sons dessa manhã de sol morno, vento fraco.
Conversa da natureza que beija o chão, adorna o céu; multiplica a vida.
Aqui, quieto, me calo. Em ti me refaço. Como cá estou sentado à beira do meu Balneário.

Floripa/SC - 2007