É tarde eu já vou indo...

A porta estará sempre aberta. Caberá a você ousar entrar, espiar, invadir e decidir descobrir o que tem do lado de dentro.
Não posso ser responsável pelas suas impressões, elas serão simplesmente suas.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Malavida

Foto: alicepguimarães
Museu Oscar Niemeyer "Olho" - Curitiba - PR

Quando tudo terminou, olhei a minha volta e vi apenas caixas. Caixas pequenas, caixas grandes, enormes; pobres embalagens de papelão empoeirado, conseguido nas esquinas; sem serventia, sem brilho e sem destino. Sim, era isso que acontecia. Ali havia um amontoado de caixas sem destino algum, já que acabara. Não sei bem porque as pessoas levam tantas coisas...talvez pensem estar guardando a sua vida. Ilusão!
Rapidamente, numa grande mala, coloquei aquilo que era meu, ou seja, aquilo que pensava, verdadeiramente, me pertencia. Sem jeito algum, sem capricho, com cabide e tudo foram jogadas às pilhas; amassadas, tudo que restava de mim. Você olhava calado, quieto, inanimado. Procurava em seus olhos qualquer brilho que trouxesse de volta o verdadeiro amigo, mas fechei o zíper com esforço e você, inexpressivo, ficou impassível diante de mim.
Quando parti, levei tudo que tinha na mala de couro, enorme e suja, coloquei o que pensava realmente ser parte da minha vida. Parti sozinha, sem alegria, sem uma estrela guia. Apesar do peso da enorme mala, ela me parecia vazia.
Ao descer do avião, surpreendeu-me o moço, que da fiscalização me viu. Fez um sinal para que eu a abrisse e mostrasse o que ali tinha. Deixei-o à vontade para expor minha vida. Abriu a grande mala sem dizer uma palavra e, parece, com dó de mim, revirou com cuidado cada pedaço daquele emaranhado. Enquanto isso acontecia, ia revivendo um pouco o meu passado. Calças velhas, blusas surradas. Lá no canto esquerdo, sob a bolsa colorida, havia uma caixa bem cuidada, coitada! Trazia o único sapato de festa; mal sabia ele - que tão pouco fora usado - agora estaria precocemente aposentado.
O homem levantou o vestido preto e admirou-se...era bonito! Era o único fiel. Estava sempre comigo nas raras oportunidades de dançar na vida. Revirando o fundo encontrou a pequena caixa marrom. Soltou um cínico sorriso como se tivesse achado algo precioso que pensava estar escondido em meio aquela barafunda. Sua face endureceu e ele apenas percebeu: ali ia todo o meu legado. As coisas que realmente gostei e levei por amor: meus brincos e colares, brilhos da minha vida opaca dos últimos vinte anos. Não abria mão deles em momento algum, mesmo que não os usasse. Gostava de remexê-los e verificar se nada havia se perdido.
Surpreso ele ficava a cada peça inusitada que encontrava: meias finas, nunca usadas; papéis escritos pelo amor infantil, com rabiscos e desenhos; chinelos de borracha; peças incomuns se misturavam e não traziam ao meu inquisidor nenhum sinal de quem eu era, ou do que ele julgava de mim. Já meio desanimado, tomou-se pelo cansaço e fechou a grande mala, resmungando o nada encontrado.
Tomei-a de volta nas mãos e enfim, me veio o único sorriso. O que aquele moço não sabia, é que ali, naquelas coisas empilhadas, sob tudo, num falso fundo, ia o grande tesouro da minha vida, sem o brilho que o ouro tem: a grande desilusão da partida. Sem abraços, sem sequer uma despedida.

Niterói - Dez/2000 - Texto sem revisão gramatical

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